Há dois anos atrás, em pleno Euro 2004, surgiu entre a nossa turma um exame apócrifo de uma suposta cadeira de Etnofutebolgrafia Portuguesa. Não sei se alguém o recorda, mas tratava-se de propor um comentário a um excerto de “Os elementos fundamentais da cultura portuguesa”, de Jorge Dias, com base na carreira que a selecção nacional então fazia no campeonato.
Agora está aí o Mundial, não em todo o seu vigor, porque a Sport TV não é para todos, mas isso não impediu nova erupção da onda “futebol-patrioteira”, bem expressa nas bandeirinhas nas janelas. Talvez seja então uma boa oportunidade para voltarmos a estas complexas questões do “ser português”, aproveitando a época do “pontapé na bola” para fazermos uso do nosso bom “jogo de cabeça”...
Assim, com a citação (desculpar-me-ão se muito extensa) de alguns fragmentos da obra, deixo-vos então uma sugestão de leitura, que me parece sempre profícua, mas que talvez seja agora mais oportuna do que nunca, para que isto do sentimento da identidade não pareça tão condicionado à bola que entra ou à bola que bate no poste...
“Nem o sebastianismo nem a saudade, postas em relevo por António Sardinha, nem o universalismo internacionalista, propalado por vários autores, nem o lirismo sonhador aliado ao fausto germânico e ao fatalismo oriental, apontados por Jorge Dias, nem a plasticidade do homem português, intuída por Natália Correia, nem o culto do Espírito Santo, que fascinou António Quadros, nem a capacidade para criar uma «filosofia portuguesa», patrocinada por Sampaio Bruno, Álvaro Ribeiro e José Marinho, nem mesmo a «brandura dos costumes», feita lugar comum, se podem considerar como características mais do que imaginárias do povo português. (...)
A sua generalização, no entanto, torna-se extremamente discutível. Por outro lado, a sua formulação dificilmente se pode desprender de conotações emotivas. Enfim, ao pressupor-se que resultam da própria «natureza» dos portugueses e não de condições sociais transitórias, levam a considerá-las como inalteráveis e sugere-se, até, que devem ser consideradas como «qualidades», mesmo quando implicam alguns defeitos. Pelo contrário, se os caracteres comportamentais se encaram como resultantes das condições sociais, terão de se tomar como susceptíveis de modificação. A sua alteração depende em grande parte do grau de desenvolvimento económico e social e não pode ser considerada como perda de identidade nacional.
Este facto exclui o conceito de identidade nacional como um dado da «natureza» ou como um problema no âmbito do «ser», mas não necessariamente a sua permanência, ou pelo menos a sua durabilidade. Com efeito, é fundamentalmente um fenómeno de consciência colectiva, que se baseia, por um lado, numa percepção das diferenças comuns verificadas em relação à população de outros países, ao nível das estruturas sociais, das manifestações culturais (nomeadamente da língua, dos hábitos e dos valores) e, por outro lado, de uma certa percepção do passado comum. Dado que o fenómeno da identidade não pode deixar de se associar ao da busca de segurança, por meio da integração do indivíduo no grupo, e que o sentimento de pertença ao todo nacional se tornou nas sociedades modernas uma expressão fortemente interiorizada da consciência de grupo, pode-se prever que as suas características se alterem com a mudança das condições sociais, mas não é de esperar que desapareçam facilmente.”
José Mattoso – A Identidade Nacional; Fundação Mário Soares/Gradiva,
Lisboa, 2003
Esta citação dava “pano para mangas”, não? Que sirva ao menos para vos desafiar à leitura e reflexão, por entre as façanhas da nossa selecção... (Zé Paulo)